Severance: quando a alienação do trabalho é levada ao extremo

Júlia Costa
7 min readAug 21, 2022

Severance é, indiscutivelmente, uma das melhores séries lançadas em 2022. Criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle, a produção da Apple TV parte de uma premissa chamativa por si só: uma sociedade onde empresas possuem a permissão para submeter os funcionários que assim desejem a um procedimento de ruptura. Trata-se de uma cirurgia pela qual as memórias pessoais dos empregados são desconectadas de suas memórias ligadas ao trabalho, de modo que quando o profissional está na sede da empresa, não se lembra de nada acerca de sua vida pessoal, à exceção do próprio nome; e quando está fora do local do trabalho, não tem nenhuma recordação acerca do que faz em sua vida profissional.

O roteiro conta a história dos funcionários da empresa Lumen, e, assim como nem mesmo os personagens da série sabem com o que trabalham, o expectador não tem maiores informações acerca do ramo ou das atividades desenvolvidas por esta empregadora.

Os primeiros minutos do episódio piloto já demonstram a violência do procedimento: no enorme estacionamento da Lumen, vemos Mark (Adam Scott), um homem de meia-idade sobre quem não temos maiores informações, chorar inconsolavelmente. Logo após, ele entra no imponente estabelecimento, se identifica, veste terno e gravata, pega um elevador e, em algum momento da subida, tem suas memórias pessoais apagadas. Ainda com os olhos vermelhos, o personagem de Adam Scott já não lembra mais do motivo do seu sofrimento e está pronto para iniciar sua jornada como um trabalhador produtivo e funcional.

Trata-se da segunda cena do primeiro episódio, “Good News About Hell”

No decorrer da série, conhecemos outros personagens que se submeteram à ruptura; pessoas contrárias à realização desta cirurgia; ex-empregados da empresa; dirigentes da corporação; e pessoas em aparente conflito entre os desejos de suas personalidades externas e as vontades manifestadas internamente na empresa. Também somos inseridos, ainda que de maneira muito limitada, em alguns debates realizados sobre a legitimidade deste procedimento, e conhecemos os motivos que levam algumas pessoas a optarem livremente por este tipo de trabalho.

O objetivo desse texto não é dar spoilers ou fazer comentários sobre o desenrolar da trama (que tem seus problemas, mas, sem dúvidas, merece ser conferida), mas traçar paralelos entre a série e um conceito fundamental da obra marxiana que está presente, ainda que não expressamente, em todo o roteiro: o de alienação.

O que significa alienação?

Muito se fala sobre este termo. Normalmente, ele é usado para fazer referência a pessoas deslocadas da realidade, fúteis ou ignorantes. Mesmo que não seja preciso muito esforço para saber que esse não é o seu significado teórico, a compreensão da alienação como um fenômeno sociológico pode ser complicada inicialmente. Pensar o exemplo da série facilita bastante esse entendimento.

De forma muito resumida, alienação em Marx pode ser entendida como a situação na qual o trabalhador não se reconhece no fruto do seu trabalho. Uma das obras nas quais ele desenvolve este conceito são os Manuscritos Econômico Filosóficos. Neles, Marx demonstra que a alienação é um processo que se manifesta de quatro maneiras principais: 1) alienação do indivíduo em relação ao fruto do seu trabalho; 2) alienação em relação ao processo produtivo; 3) alienação quanto ao pertencimento ao gênero humano e 4) alienação quanto ao ser genérico.

Passemos à compreensão da primeira manifestação do fenômeno (alienação quanto ao fruto do trabalho). No capitalismo, absolutamente tudo é vendido como mercadoria — inclusive a força de trabalho. Dessa forma, neste modelo de sociabilidade, o fruto do trabalho é um objeto estranho ao trabalhador ou trabalhadora, e os meios de trabalho, o processo produtivo e a riqueza produzida são dele ou dela apartados.

Após doar o tempo de suas vidas a um capitalista, cada pessoa recebe um salário, isto é, um valor pago pela venda da força de trabalho como mercadoria. Os trabalhadores não têm acesso diretamente à riqueza que produzem, mas a uma remuneração que permitirá a aquisição limitada desses bens no mercado, como consumidores e consumidoras. Uma consequência desse processo está no fato de que o trabalhador normalmente não se vê como produtor da riqueza existente na sociedade.

Esta compreensão conduz à segunda manifestação da alienação, que se dá em relação ao processo produtivo. Em razão de o trabalhador se encontrar alienado em relação ao processo de produção dos bens e da riqueza material da sociedade, ele não enxerga o trabalho como o momento no qual alcançará realização pessoal, mas como uma atividade penosa, na qual nega a si mesmo. O trabalho é visto como uma atividade desagradável, que se realiza somente em razão da necessidade de sobrevivência — nunca é demais lembrar que a liberdade desfrutada por 99% da população no capitalismo é nada mais que a liberdade de optar entre vender sua força de trabalho ou morrer de fome, como ensinam Marx e Pachukanis.

Para Marx, essa forma de relação com o trabalho gera, também, a alienação do indivíduo em relação ao pertencimento ao gênero humano. Ele enxerga o trabalho como uma atividade vital e essencialmente ligada à condição humana, de forma que o seu desempenho nos moldes capitalistas — a contragosto, mecanicamente, para satisfazer necessidades imediatas de sobrevivência — é alienante. Não se trata de afirmar que, em uma sociedade não capitalista ou comunista, o trabalho seria uma atividade necessariamente prazerosa, mas de entender que, em outra forma de socialização, este seria desempenhado de forma dotada de sentido. O trabalhador saberia o porquê e para quê trabalha, teria acesso à riqueza por ele produzida, trabalharia menos e, consequentemente, teria tempo para desenvolver outras potencialidades.

Além disso, pela quarta dimensão da alienação, entendemos que ela se dá com o estranhamento do homem em relação a si mesmo. Ao inserir-se no mercado e desempenhar a função para a qual foi contratado, o trabalhador não se reconhece, pois é obrigado a realizar atividades que não têm sentido para ele, e o faz porque precisa de um salário. Dito de outro modo, indivíduo sente que só é ele mesmo quando não está trabalhando.

Como a alienação se manifesta?

Desde a ascensão do capitalismo aos dias atuais, estes processos tem se manifestado de formas distintas. Vejamos alguns exemplos.

Na sociedade industrial analisada por Marx no século XIX, a alienação do trabalhador em relação ao fruto do seu trabalho pode ser visualizada a partir da situação clássica do trabalhador fabril, que, apesar de produzir bens ou tecnologias de ponta (para a época), não recebe um salário que lhe permita acessá-los e nem possui direitos trabalhistas mínimos que lhe garantam usufruir do que se entende atualmente como “qualidade de vida”.

Algumas décadas à frente, é possível pensar o caso do trabalhador fordista-taylorista — formas de gestão do trabalho retratadas no clássico Tempos Modernos (1936) — da primeira metade do século XX, que realiza atividades mecânicas e fragmentadas e não têm acesso ao todo construído ao final da linha de produção.

Na sociedade neoliberal em que estamos inseridos (que se consolida no último quartel do século XX e perdura até a atualidade), diferentemente do que ocorria nos modelos taylorista e fordista, nos quais a subjetividade do trabalhador era desprezada, a empresa contemporânea visa envolver o trabalhador na atividade, utilizando-se de seus saberes para agregar mais-valia, como demonstra Ricardo Antunes em “O Privilégio da Servidão” (2020). Nesse processo, diversas técnicas que visam promover o engajamento são utilizadas, e cada pessoa é estimulada a se sentir pertencente à empresa, a “vestir a camisa”, a se mostrar como alguém envolvido na atividade que exerce. É daí que surge a valorização de figuras como a do workaholic, do trabalhador proativo, do “colaborador”, etc.

Ademais, além da manutenção das formas tradicionais de alienação e da alteração da relação entre a empresa e seus trabalhadores formais, no capitalismo neoliberal visualizamos a alienação a partir da ascensão de novas formas de contratação flexíveis e precárias, como a terceirização, o trabalho intermitente, a uberização, entre outros. Um exemplo emblemático desta última é o dos entregadores de aplicativo, que percorrem as ruas das cidades realizando entregas de comidas, quando, muitas vezes, se encontram eles próprios em situação de insegurança alimentar.

Severance leva todos esses conceitos e manifestações da alienação ao extremo. Na realidade construída na série, a alienação é tamanha que o trabalhador sequer sabe o que faz, ou mesmo o ramo de atividades da empresa onde trabalha: mesmo com suas memórias apagadas, os personagens trabalham em tarefas de refinamento de dados criptografados, e não fazem ideia do conteúdo com o qual estão cotidianamente trabalhando.

Isto é, na sociedade retratada na produção, vai-se além (ou melhor, aprimora-se) a forma de gestão neoliberal, e se imagina um momento de desenvolvimento capitalista onde o intelecto dos trabalhadores é explorado ao máximo, mas sem o falso discurso que valoriza suas subjetividades, que são descartadas sem qualquer escrúpulo.

Em tal estágio de desenvolvimento capitalista (que o roteiro não deixa claro quando ocorre, ao menos nesta primeira temporada), a empresa despreza as individualidades de seus trabalhadores e realiza a ruptura, de modo que, durante o expediente, eles são nada mais que capital humano a ser instrumentalizado para o lucro. Apesar de a instrumentalização humana ser inerente a esse modo de produção, é interessante como, aqui, ela ocorre de forma ainda mais escancarada.

Nesse contexto distópico, a concepção marxiana de trabalho como atividade essencialmente humana e que deveria ser desempenhada de maneira dotada de sentido se encontra distante e esquecida. A alienação atinge contornos extremos, e o trabalhador é tratado da forma mais explícita possível como uma engrenagem que opera em favor do capital.

Para além de facilitar a compreensão do processo de alienação, o que Severance comunica que é o sistema capitalista está sempre se reinventando em prol da busca desenfreada por acumulação, mesmo que, para tanto, seja necessário acentuar a exploração humana.

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Júlia Costa

Direito, cinema, política, cultura pop, marxismo e aleatoriedades