Primeiras impressões sobre a Tetralogia Napolitana — e por que você deveria ler

Júlia Costa
6 min readFeb 3, 2022

Quebrando protocolos dessa rede social, que tradicionalmente utilizo para falar de cinema e Direito, escrevo esse texto logo após ter concluído a leitura de História da Menina Perdida, quarto livro da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante.

O faço pela ânsia de eternizar minhas primeiras impressões em um formato que não caberia em uma resenha do Skoob, mas também para incentivar o máximo de pessoas possível a não se enganar pelas capas ruins das edições brasileiras e dar uma chance a essa história — por isso, esse texto não trará spoilers.

Ao longo da minha vida como leitora, tive contato com algumas séries de livros: primeiramente a infanto-juvenil “Poderosa”, quando tinha uns 10 anos; depois, na pré-adolescência, a marcante Percy Jackson e os Olimpianos — que de fato me fez criar gosto pela leitura; posteriormente, distopias que fizeram muito sucesso nos anos 2010: Jogos Vorazes, Divergente, entre outras.

Já mais velha, com uns 19 anos, li a trilogia Fundação (Isaac Asimov) e me apaixonei pelo universo do autor, afinal, ficção científica sempre foi um dos meus gêneros favoritos. Apesar disso, estive constantemente incomodada com o machismo inerente à obra de Asimov, que tinha uma mente brilhante para imaginar o futuro da humanidade a milhares de anos à frente, mas limitada para pensar questões sociais e superar a própria visão enviesada.

Enfim, nesse meio-tempo entre final da adolescência e início da vida adulta, até tentei me engajar de leitura de outras séries, mas nenhuma delas me cativou como aquelas que li quando era mais nova e passava horas a fio presa na história. Não havia encontrado nenhuma que se tornasse minha favorita ou que me desse o mesmo prazer pela leitura continuada de mais de um volume. Até ter contato com a obra de Elena Ferrante.

Comecei a leitura da Tetralogia de forma completamente despretensiosa, mas já ao final do primeiro livro, percebi que a série provavelmente me marcaria de alguma forma. Agora, ao terminar o último livro, concluo que minha expectativa se confirmou e me vejo completamente impelida a falar sobre essa história com qualquer pessoa.

Por que ler a Tetralogia Napolitana?

A Tetralogia Napolitana é composta por A Amiga Genial (2011), História do Novo Sobrenome (2012), História de quem foge e de quem fica (2013) e História da Menina Perdida (2014). Os livros contam a história de Elena Greco (Lenu) e Rafaella Cerullo (Lila), duas mulheres italianas que cresceram em Nápoles da década de 1950 e partilhavam o prazer pela obtenção de conhecimento.

Em um cenário de devastação do pós-guerra, acompanhamos, em A Amiga Genial, a infância e adolescência dessas duas personagens, que viviam em um pobre e violento bairro napolitano. A narrativa é feita pela perspectiva de Lenu, e aborda, inicialmente, acontecimentos aparentemente banais de sua infância junto a Lila, como a história da perda de suas bonecas, o dia a dia na escolinha que frequentavam, a ocasião em que compraram e leram juntas o livro “Mulherzinhas”, e o dia em que fugiram do bairro para irem, sozinhas, à praia.

Talvez, por isso, a leitura do primeiro volume tenha sido a mais lenta: são retratados, inicialmente, acontecimentos da infância, que vão ganhar relevância somente mais à frente — como quando, na nossa vida, olhamos para trás e percebemos que alguma experiência específica foi um divisor de águas. Mas posso garantir: vale a pena superar a primeira parte mais densa para acessar o restante da história, que adquire contornos impressionantes já na segunda metade do primeiro livro.

Os demais volumes retratam distintas fases da vida de ambas as personagens: o inicio da vida adulta, a maturidade, a velhice. E é incrível a forma como a autora consegue fazer com que, através da história de Lenu e Lila, o leitor percorra a história da Itália, da luta operária, da guerra fria, dos movimentos feministas, enfim, da segunda metade do século XX, em seus desdobramentos históricos, culturais, sociais e econômicos. Esse, com certeza, é um dos (muitos) pontos altos da escrita de Elena Ferrante e responsável pelo meu envolvimento tão intenso com a trama.

Mas as qualidades são várias, e eu não poderia deixar de mencionar a complexidade dos personagens, principalmente, das protagonistas. Em alguns momentos, Elena e Lila são extremamente identificáveis, mas, em outros, suas atitudes e pensamentos geram desgosto. Nada sobre elas é óbvio — sobretudo a respeito de Lila, uma das personagens mais complexas que já conheci, e que é retratada pela perspectiva de sua amiga. A própria relação entre elas é conflituosa: uma ligação forte, inegavelmente marcada por muito amor de ambos os lados, mas ao mesmo tempo por traços de abusividade, ciúmes, inveja, competitividade e uma infinidade de sentimentos normalmente não associados à concepção clássica de amizade.

A história ganhou adaptação audiovisual e virou série da HBO, na qual Margherita Mazzucco e Gaia Girace interpretam, respectivamente, Lenu e Lila

Na verdade, na tetralogia, os sentimentos bons estão sempre acompanhados por outras camadas não tão agradáveis assim. A relação com temas como a maternidade, por exemplo, é retratada de forma crua: em momento algum há uma naturalização do sentimento materno e das relações entre mãe e filha. Tudo é complexo. A culpa, o egoísmo, a raiva e até mesmo a aversão a um ser de quem se espera um amor devocional (seja da mãe em relação à filha o da filha em relação à mãe) estão sempre em evidência.

Os sentimentos óbvios, portanto, não aparecem, e dão lugar a uma narrativa extremamente honesta, ainda que por vezes perturbadora. E é incrível poder acompanhar o amadurecimento, a descoberta das sensações, dos amores, do mundo, pela perspectiva feminina de Lenu. Foi inevitável não me reconhecer em algumas de suas percepções e inseguranças e, particularmente, com a sua relação com a educação e com o acesso à cultura, sempre trabalhadas por Ferrante como meios de emancipação, utilizados para driblar a falta de acesso a oportunidades vivenciada pelas personagens.

A representação da autora a respeito dos homens que entram e saem das vidas de Lenu e Lila demonstra uma dificuldade das personagens de conseguirem se relacionar (amorosamente ou não) de forma dissociada das disparidades de gênero tão fortes na época. Entre fascistas, socialistas e comunistas, permanece em quase todos os personagens masculinos a herança histórica da cultura na qual cresceram, o desprezo às mulheres — em maior ou menor grau — , o sentimento de superioridade em relação ao feminino, manifestado até mesmo pelos mais medíocres.

Todo esse emaranhado de relações e de temas como amor, traição, violência, revolução, fascismo, irmandade e lealdade são abordados com uma estilística textual invejável, que consegue mesclar a leveza das palavras com a profundidade de seu conteúdo.

“Em que desordem vivíamos, quantos fragmentos de nós iam sendo lançados como se viver fosse explodir em estilhaços.” (História da menina perdida)

Assim como a personagem de Lila, Elena Ferrante parece querer ser esquecida, ou melhor, não quer nem mesmo ser conhecida, e por isso utiliza o pseudônimo. Ainda que hajam especulações, sua identicidade permanece um mistério.

Por outro lado, sua obra certamente perdurará pelos anos. De minha parte, a conclusão da leitura gera uma sensação de vazio, mas também de prazer por ter tido contato com um histórica tão rica em seus diversos aspectos.

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Júlia Costa

Direito, cinema, política, cultura pop, marxismo e aleatoriedades