Nomadland e o precariado como vítima fatal do neoliberalismo

Júlia Costa
7 min readMar 7, 2021

Dirigido por Chloé Zhao, Nomadland (2020) conta a história de Fern (Frances McDormand), uma viúva de 60 anos que se vê desempregada e obrigada a sair da extinta comunidade onde morava, tendo em vista o total colapso econômico ocasionado pelo fechamento de uma grande fábrica que funcionava na cidade.

Vencedor do Globo de Ouro nas categorias Melhor Filme Dramático e Melhor Direção — sendo Zhao, inclusive, a primeira mulher em 34 anos a receber tal prêmio — , o filme é um dos principais nomes na corrida para o Oscar, e aborda, de forma extremamente sensível, temas como pertencimento, luto, solidariedade, conexão com a terra, entre outros.

Porém, acima de tudo, Nomadland visa denunciar a realidade de sofrimento vivenciada pela classe trabalhadora e o cenário de injustiça social intensificado nos Estados Unidos após a crise econômica de 2008.

Chloé Zhao e Frances McDormand

Adotando uma inconfundível semelhança com as obras de Ken Loach (diretor dos maravilhosos I, Daniel Blake e Sorry We Missed You), tendo em vista a utilização de uma linguagem cinematográfica realista e quase documental, Chloé Zhao demonstra com maestria as consequências da fragmentação de direitos trabalhistas e previdenciários, em um contexto de destruição do Estado Social.

Sem pretender realizar uma crítica aos elementos técnicos do longa, esse texto se propõe a discutir a precarização do mundo do trabalho, sobretudo no Brasil, sob a ótica do filme, traçando relações com a realidade enfrentada localmente pós Emenda Constitucional nº 95 (que estabeleceu o famigerado teto de gastos) e contrarreformas trabalhista e previdenciária, o que será feito a seguir.

Precariado: a face mais explorada da classe trabalhadora

Cena do filme

Para traçar paralelos entre a realidade mostrada em Nomadland e a situação da classe trabalhadora no Brasil, faz-se necessário, primeiramente, contextualizar a realidade dos personagens do filme.

Nesse sentido, tem-se que a personagem de Frances McDormand (assim como a maioria das pessoas com quem ela interage) é uma nômade, que vive em seu trailer, deslocando-se de cidade em cidade em busca de empregos que garantam sua sobrevivência.

Esse estilo de vida não provém de uma escolha livremente realizada pelos personagens, é claro: é fruto da dinâmica capitalista, que minou as possibilidades de sobrevivência desse grupo de trabalhadores — no caso da protagonista, tal “escolha” foi fruto da extinção da pequena cidade onde residia, em virtude do fechamento de uma grande fábrica que sustentava a economia local.

Pôster do filme

Nesse contexto, Nomadland conta a história real de um imenso contingente de trabalhadores, que tendo perdido seus empregos formais e suas casas, se veem obrigados a residir em carros e a aceitar qualquer tipo de trabalho que lhes seja oferecido, seja na realização de serviços rurais, seja em um galpão da bilionária Amazon — na qual a protagonista consegue um emprego temporário, logo no início do filme.

A realidade mostrada no longa demonstra que há postos de trabalho disponíveis, entretanto, as modalidades de trabalho ofertadas àquelas pessoas dificilmente correspondem ao modelo de emprego formal, consistindo, na verdade, em trabalhos de caráter intermitente, informal ou temporário, extremamente mal remunerados.

Essa classe de trabalhadores, que é ainda mais explorada que os trabalhadores formais, é categorizada pelo pesquisador Ruy Braga (citado por Marcelo Badaró Mattos em sua obra “A Classe Trabalhadora”) como precariado.

Para o referido pesquisador, o precariado é a “massa formada por trabalhadores desqualificados e semiqualificados que entram e saem rapidamente do mercado de trabalho, por jovens à procura do primeiro emprego, por trabalhadores recém-saídos da informalidade e por trabalhadores sub-remunerados” (apud MATTOS, 2020, p. 117).

Esse classe de trabalhadores cresce à medida em que se expande o Estado neoliberal, e, infelizmente, vem se tornando a grande marca do mercado de trabalho mundial. Isto pois, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, quase dois terços da força de trabalho mundial está submetida à informalidade.

O precariado no Brasil

Em sintonia com uma tendência mundial inaugurada no final da década de 1970 e que ressurgiu a partir de crise financeira de 2008, as medidas de desregulamentação e flexibilização trabalhistas que possibilitaram o surgimento do precariado chegaram ao Brasil.

Entregador de aplicativo realizando sua prestação laboral. No Brasil, tais trabalhadores têm sido majoritariamente considerados autônomos, não possuindo, portanto, vínculo empregatício com as empresas detentoras dos softwares.

Inclusive, tal processo se intensificou a partir do ano de 2016, com a derrubada do governo democraticamente eleito e a adoção de uma agenda ultraliberal por parte de governos que o sucederam.

Nesse contexto, além da Emenda Constitucional nº 95, que limitou a possibilidade de investimento estatal em serviços públicos e políticas sociais, a fragmentação do Estado Social foi impulsionada, mais recentemente, pela Lei da Reforma Trabalhista, que, entre diversos outros absurdos sociais e jurídicos, instituiu o trabalho intermitente no Brasil; bem como pela Lei 13.429/2017, que ampliou a aplicabilidade da terceirização até mesmo às atividades-fim do empregador; ou, ainda, pela Reforma da Previdência, que tornou ainda mais difícil a conquista de uma aposentadoria digna por parte do trabalhador assalariado — e praticamente impossível ao trabalhador informal.

Observa-se, portanto, um constante processo de mitigação de direitos trabalhistas, que se intensificou ainda mais diante das Medidas Provisórias promulgadas no cenário de pandemia da COVID-19, incluindo a tentativa de criação, por parte do Governo Federal, do Contrato Verde a Amarelo, que buscava legalizar novas possibilidades de precarização do trabalho.

A morte como consequência da precarização

No filme de Chloé Zhao, visualiza-se personagens que, ainda que vivendo no país mais rico do mundo, atravessam dificuldades severas de sobrevivência, como a fome, o frio, o desalento e a desesperança.

No Brasil, periferia do capitalismo, essa realidade crua é vivenciada por ainda mais trabalhadores e trabalhadoras, que passam por um processo contínuo de empobrecimento e redução do poder de compra, no qual o acesso a bens de consumo essenciais resta a cada dia mais aniquilado(a carne, por exemplo, já deixou de fazer parte da mesa de milhares de brasileiros).

Assim como em Nomadland, trabalhadores brasileiros também enfrentam dificuldades no quesito moradia, tendo em vista que o déficit habitacional atinge 22 milhões de brasileiros e, portanto, mais de 10% da população do país (conforme estudo realizado pela Fundação João Pinheiro, publicado em novembro de 2013).

Não fosse suficiente, cerca de 10 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar, ao passo que o desemprego atinge 14 milhões de pessoas, chegando ao índice de 14,1% no trimestre de setembro a novembro de 2020.

A pobreza, por sua vez, condicionada pelo IBGE ao fato de viver o indivíduo com até R$ 436,00 por mês, atinge 65 milhões de cidadãos no Brasil.

O que se observa, portanto, é o que sistema vigente, marcado por crises econômicas cíclicas e pela subordinação da vida ao capital, resulta na precarização e na coisificação dos trabalhadores, o que se converte na morte de uma massa de pessoas, seja pela fome, seja pelo conjunto de condições de vida desfavoráveis por elas vivenciado (na periferia de São Paulo, por exemplo, morre-se 23 anos mais cedo que nas áreas nobres).

Todo esse cenário de devastação dos direitos da classe trabalhadora é atravessado concomitantemente ao crescimento do capital e ao aumento da concentração de riquezas, no qual, somente no Brasil, 42 bilionários aumentaram suas riquezas em 2020, mesmo diante do contexto de empobrecimento da população em virtude da pandemia.

Alternativa(s) à barbárie

Uma das cenas mais bonitas mostradas em Nomadland se passa durante a visita da protagonista a uma comunidade de outros nômades, trabalhadores vítimas das mesmas situações de exploração.

Isto pois é nesse ato em que há um dos melhores momentos do filme, que consiste na seguinte fala do líder do grupo:

“[…] nós não apenas aceitamos a tirania do dólar, a tirania do mercado. Nós a abraçamos. Nós alegremente vestimos a sela da tirania do dólar e vivemos toda a nossa vida assim. Pensem como uma analogia a um burro de carga: um burro de carga disposto a trabalhar até a morte e então ser colocado para fora. E é isso que acontece com muitos de nós. Se a sociedade quer nos abandonar mandando a gente, burros de carga, para fora, nós temos que nos unir e cuidar uns dos outros. Este é o propósito desse lugar. A meu ver, o Titanic está afundando e os tempos econômicos estão mudando. Então, meu objetivo é pegar botes salva-vidas e embarcar o máximo de pessoas possível.

Nomadland não é sobre trabalhadores estadunidenses, é sobre a classe trabalhadora. Sobre mim e, provavelmente, sobre você.

Não é somente sobre pessoas que não têm moradia, mas sobre todos que lidam com as consequências nefastas da mercantilização da vida e da subordinação ao capital.

Se há alguma alternativa a esse sistema e a essa forma de exploração do trabalho humano, que suga as potencialidades do indivíduo e depois o descarta, tal caminho somente poderá ser trilhado a partir das lutas da classe trabalhadora, pela solidariedade entre aqueles que estão submetidos à mesma exploração.

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Júlia Costa

Direito, cinema, política, cultura pop, marxismo e aleatoriedades