Direito Penal e Cinema: entendendo o conceito de crime impossível a partir de Minority Report

Júlia Costa
4 min readJul 7, 2019

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Dirigido por Steven Spielberg, o filme Minority Report (2002) aborda um futuro no qual é possível prever homicídios antes que eles se realizem. Nesse contexto, o detetive John Anderton (Tom Cruise) trabalha em um departamento de polícia especializado de Washington responsável por impedir a concretização dos crimes previstos, bem como por realizar as prisões dos potenciais homicidas.

Sem adentrar em explicações a respeito de como são previstos os delitos — até mesmo pois, para mim, este foi um dos pontos em que o longa falhou — , ou mesmo aos debates sobre liberdade, determinismo e seus paradoxos, proponho, a partir do filme, uma reflexão acerca dos limites do poder de punir do Estado. Direcionando a abordagem a este tema, chega-se facilmente à seguinte reflexão: caso a tecnologia prevista no filme existisse e fosse acessível nos dias atuais, seriam lícitos, no Brasil, procedimentos semelhantes aos utilizados pelo departamento de “pré-crime”? Isto é, seria possível punir alguém com base em uma previsão de um comportamento futuro?

A resposta para a pergunta acima é negativa, e pode ser extraída a partir da leitura do artigo 17 do Código Penal, que dispõe acerca do instituto do crime impossível. Pela interpretação do dispositivo legal, extrai-se que crime impossível é aquele no qual não há possibilidade de consumação, seja por absoluta ineficácia do meio de execução ou por absoluta impropriedade do objeto material. Em outras palavras: no crime impossível, por mais que o agente deseje praticar a conduta criminosa, não há a menor chance de que tal consumação seja alcançada.

A impossibilidade da consumação, conforme exposto, pode decorrer de duas situações distintas: 1) absoluta ineficácia do meio ou 2) absoluta impropriedade do objeto. Descomplicando os termos jurídicos, meio é tudo aquilo que o agente utiliza como instrumento para produzir o resultado por ele pretendido, podendo ser, pois, uma faca, um revólver, uma pedra, veneno, entre outros utensílios. Seguindo essa linha de raciocínio, meio absolutamente ineficaz é aquele que no caso concreto não possui a mínima aptidão para produzir os efeitos pretendidos. É absolutamente ineficaz, por exemplo, atirar em alguém com uma arma de brinquedo, ou mesmo utilizar uma substância não-nociva no lugar de veneno, esperando, com tal conduta, causar algum dano à sua integridade física.

Objeto do crime, por sua vez, é a pessoa ou a coisa sobre a qual recai a conduta criminosa — o objeto material do homicídio, desta feita, é a pessoa contra a qual se dirige o agente. Desse modo, o objeto será absolutamente ineficaz quando, ainda no exemplo do crime de homicídio, um indivíduo atira em uma pessoa, esperando matá-la, sem saber, todavia, que o sujeito em quem atirou já se encontrava morto. Ora, não há como cometer um homicídio contra quem já morreu, sendo o cadáver objeto absolutamente impróprio.

A partir da compreensão de que o Código Penal determina não ser punível o crime impossível, percebe-se que a situação abordada no filme dirigido por Spielberg, atraente do ponto de vista da ficção, seria incompatível com os princípios e regras do direito contemporâneo. Pelo modelo garantista positivado em nossa Constituição, é necessária a exteriorização de uma ação para a haja punição, ideia esta que decorre do axioma nulla injuria sine actione (não há ofensa a bens jurídicos e, consequentemente, possibilidade de punição, sem ação concreta do indivíduo).

A incompatibilidade entre o modelo de “pré-crime” previsto no filme e o ordenamento jurídico é percebida de modo mais claro pela análise da Súmula nº 145 do STF, segundo a qual “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. A partir da tese firmada pelo Supremo, por conseguinte, pacificou-se o entendimento de que se a polícia preparar o flagrante de modo a tornar impossível a consumação do delito — ou seja, do modo como ocorre frequentemente do longa — , caracterizado está o crime impossível, e, nos termos do art. 17 do CP, não há qualquer conduta passível de punição.

O flagrante, nestes casos, é esperado, uma vez que as autoridades policiais tem o prévio conhecimento da intenção do agente em cometer a infração penal, e a aguardam, cuidando de todos os detalhes de modo a impossibilitar sua ocorrência. O entendimento adotado, em resumo, é o de que, considerando que o indivíduo não tinha como alcançar a consumação do delito porque dele soubera com antecedência a autoridade policial e preparou tudo de modo a evitá-la, a ele não será atribuída a tentativa do delito.

Crime impossível, pois, não é crime, e eventuais avanços tecnológicos que permitam a previsibilidade de condutas devem ser encarados com cautela. Se utilizados para prevenir e orientar ações de segurança pública, seriam bem-vindos; se, por outro lado, usados para fundamentar a punição sem conduta, possuiriam constitucionalidade duvidosa.

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Júlia Costa

Direito, cinema, política, cultura pop, marxismo e aleatoriedades