A infeliz semelhança entre “A Outra História Americana” e a atual narrativa brasileira

Júlia Costa
6 min readApr 25, 2018

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Na semana passada assisti ao filme “A Outra História Americana” (American History X), de 1998. Dirigido por Tony Kaye e estrelado por Edward Norton, o longa conta a história de Derek Vinyard, um neonazista que acaba indo para a prisão após assassinar dois homens negros que tentavam furtar o seu carro, e que, tendo passado por experiências que o fizeram questionar seus preconceitos, tenta convencer o seu irmão mais novo — também neonazista — a seguir um caminho diferente.

O filme é tecnicamente excelente, e conta com atuações, roteiro e fotografia excepcionais. Entretanto, o que me moveu a escrever esse texto, dessa vez, não foram esses critérios, e sim a relação assustadora que encontrei entre o discurso da comunidade neonazista americana, bastante abordado no longa, e as falas produzidas por expoentes da emergente extrema direita brasileira e pelos seus seguidores.

A origem do discurso de ódio

Cena na qual o personagem interpretado por Edward Norton orgulhosamente se rende à polícia após ter assassinado brutalmente dois homens negros.

Percebi tal semelhança, em primeiro lugar, analisando as origens do posicionamento político do personagem de Norton, que foi construído a partir de uma visão preconceituosa repassada para ele em seu ambiente familiar, desde o início de sua adolescência, e, posteriormente, pela morte de seu pai nas mãos de dois traficantes negros, realidade esta que serviu como um catalisador para o crescimento do ódio às minorias que Derek já cultivava. Em outras palavras: os fatores cruciais que originaram a mentalidade neonazista do protagonista foram basicamente a ignorância e o ódio. E não seriam também esses fatores os responsáveis pelo crescente discurso fascista no Brasil?

Diria que sim, tendo em vista que aqui a ignorância também se apresenta como um pré-requisito para a formação de um extremista político. O brasileiro médio, que provavelmente não teve acesso a uma educação crítica, muitas vezes acaba construindo seu juízo acerca dos fatos com base no que é amplamente divulgado pela mídia, na opinião do líder da instituição religiosa à qual está vinculado ou mesmo nas populares fake news — amplamente utilizadas por um grande expoente desse grupo, o MBL, ou “Movimento Brasil Livre” — , que se espalham aos montes pelas redes sociais.

Desse modo, portando uma ignorância travestida de conhecimento, o fascista em potencial consolida o seu desprezo às minorias a partir de um critério mais emocional que o anterior: experiências de insegurança vivenciadas por ele, por amigos ou por familiares. Ou seja: enquanto no filme, Derek simpatizou pelo nazismo graças ao ódio que sentia em virtude do assassinato de seu pai, muitos brasileiros aderem a discursos extremistas e contrários à perspectiva dos direitos humanos pelos mesmos motivos — isto é: devido a alguma violência sofrida contra si ou contra entes queridos. É nesse segundo momento que, graças a um fator emocional, a ignorância se transforma em ódio e intolerância.

A semelhança no tratamento dado às minorias

Além das questões referentes à origem do extremismo, o discurso em si, proferido tanto pelos membros da comunidade neonazista retratada no longa, quanto por alguns “cidadãos de bem” brasileiros , também é bastante similar.

Em vários momentos do filme, os membros da gangue neonazista em questão afirmam que o governo privilegia as populações minoritárias (mais especificamente os negros e imigrantes), e que esse tratamento diferencial prejudica aos americanos brancos. Esse discurso não é estranho no Brasil, onde crescem os grupos liderados pela família Bolsonaro, pelos fundadores do MBL, por alguns membros da bancada evangélica e outros políticos correlatos.

Só para que se tenha uma ideia da afinidade entre os discursos, trago uma fala do protagonista do filme em relação ao tema da imigração:

“É sobre trabalhadores americanos decentes na pior porque o governo liga mais para os direitos constitucionais de alguns estrangeiros […] São os americanos quem estão famintos e pobres […] Estamos perdendo nossa liberdade para que malditos estrangeiros venham explorar nosso país”

Sobre este tema, a extrema direita brasileira, aqui personificada na figura de Jair Bolsonaro, pré-candidato à presidência pelo PSL, se manifesta no mesmo sentido:

“[…] é menos gente na rua para fazer frente aos marginais do MST, que são engordados agora por senegaleses, haitianos, iranianos, bolivianos, e tudo que é escória do mundo, né, e agora tá chegando os sírios também aqui. A escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos problemas demais para resolver.”

Jair Bolsonaro, em entrevista ao jornal goiano “Opção”, em 2015.

A correspondência entre o teor das declarações é inegável, e chega a ser redundante comentar sobre o quão preocupante é o fato de que tantos brasileiros se sintam representados por falas semelhantes às proferidas por membros de grupos neonazistas.

A relativização do valor da vida

Em consonância ao que já foi observado, a forma como a crescente corrente extremista brasileira encara questões referentes ao direito à vida também se assimila a retratada no longa.

Como dito no início, o personagem principal foi preso por assassinar dois homens que tentavam roubar o seu carro. Ao fazer isso, ele entendeu que estava no seu direito, e que não havia cometido erro algum, pois estava apenas reagindo a uma violência. Na visão deturpada do neonazista, aqueles homens, por serem negros e atentarem contra a sua propriedade, mereciam a punição que receberam — uma execução brutal, que em muito excedeu a simples legítima-defesa.

No Brasil, com a proliferação de chavões como “bandido bom é bandido morto”, observamos o mesmo movimento: assim como no grupo dos carecas americanos, há uma tentativa de relativizar o valor da vida do outro, a depender do lugar social que este outro ocupa. Desse modo, o “bandido” pobre e favelado (faço esse recorte, pois sujeitos que não ocupam esse lugar social geralmente recebem tratamento bem mais brando) não é visto nem mesmo como um homem, mas como uma criatura a qual não é aplicável nenhum tipo de direito, nem mesmo aqueles mais básicos, entre os quais está o direito à vida.

Adotando uma visão maniqueísta da realidade, que divide os cidadãos brasileiros entre aqueles que são “de bem” e os que não o são, a brutalidade e o extermínio são legitimados, e o país se encaminha a passos largos para vias anti-democráticas. Tudo em nome da paz e da ordem social.

Porque considero essas semelhanças tão assustadoras

São várias as semelhanças que podem ser percebidas entre o momento que o país vivencia e a realidade abordada no filme de Tony Kaye, mas, para que essa leitura não fique cansativa demais, vou me restringir a estas já comentadas. Alguns podem achar que estou forçando a barra ao comparar o contexto dos EUA na década de 1990 com atual momento brasileiro, mas, dentro dos limites aqui postos, não acredito que essa comparação seja assim tão incoerente.

Ademais, destaco que, infelizmente, ao assistir o filme, não me surpreendi muito com a forma como aquelas pessoas pensavam, pois já havia testemunhado manifestações semelhantes por parte de simpatizantes dos grupos e políticos aqui citados — e isso é o que mais me assusta. Assim, uma experiência cinematográfica que deveria ter sido de espanto ou estranheza, tornou-se, em partes, de identificação com uma realidade que é crescente no Brasil, e de consequente preocupação com os rumos que o país corre o risco de tomar.

“A Outra História Americana” me fez pensar sobre o quão perigosas são as opiniões políticas que se baseiam no ódio, que devem ser sempre combatidas e questionadas; e que a existência de pensamentos como os aqui citados é sintomática, e só mostra a vulnerabilidade da jovem democracia brasileira. Tudo isso me faz crer que, infelizmente, Bertoldt Brecht estava certo quando afirmou que “a cadela do fascismo está sempre no cio.”

Gostaram do texto? Concordam com o que foi aqui colocado? Acrescentariam algo? Sintam-se a vontade para comentar.

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Júlia Costa

Direito, cinema, política, cultura pop, marxismo e aleatoriedades